A psicologia das finanças: como nossos instintos tornam o mercado imprevisível
Por Bruno Vaiano
O mercado financeiro é uma entidade tão imperfeita quanto os humanos que o compõem: cada investidor está sujeito a arapucas psicológicas irracionais. Juntos, eles formam um ecossistema darwiniano – no qual vence quem domar melhor seu instinto.
“Você já ouviu a história do economista que encontrou uma nota de R$ 100 no chão?”, me pergunta Igor Barenboim, professor de finanças da FGV.
“Não.”
“Então, ele não pega, porque se a nota fosse de verdade, alguém já teria pegado.”
Para um acadêmico das antigas – não é o caso de Igor –, a piadinha ilustra o conceito mais determinante do mercado financeiro, o de que não existe almoço grátis. O preço de uma ação, em um certo dia e um horário, resulta de toda a informação disponível aos investidores até aquele instante no tempo: os últimos balanços trimestrais, o discurso mais recente do CEO, a descoberta de que houve corrupção num negócio em que empresa se envolveu etc. As notícias mexem com a cotação no momento exato em que vêm a público.
A consequência lógica disso é que não é simples comprar um ativo de preço aparentemente subestimado na esperança de que ele suba. Não existe “preço errado”. O conjunto de investidores seria plenamente eficaz em precificar os papéis. Ou seja: uma ação que caiu 90% nunca estaria “barata demais” (alô, IRBR3), pronta para enriquecer quem entrar nela hoje. O valor atual é o certo para o momento e pronto.
Existem algumas demonstrações empíricas desse fenômeno. A mais conhecida está num artigo científico publicado em 1969 pelo prêmio Nobel Eugene Fama e seus colegas. Eles analisaram 940 splits de ações realizados entre 1927 e 1959.
Um split é o seguinte: uma empresa abriu capital com 10 mil ações de R$ 10 – um IPO bem humilde. Anos depois, ela cresceu e chegou a um market cap de R$ 1 bilhão. Cada ação, agora, vale R$ 100 mil – um valor alto demais para garantir liquidez na bolsa. O jeito, então, é picá-la em centenas de ações menores, para que mais gente possa negociá-la. Esse é o split – numa versão exagerada, para ficar didático. Na prática, quase nenhuma ação passa de R$ 100 sem ser picada.
A manobra não muda nada para os sócios: você era dono de uma ação de R$ 100 mil, e passa a ser dono de 10 mil ações de R$ 10. Mas, como haverá mais negociações e os papéis já vinham bem, a chance é que a ação suba logo após o split.
Ou não? Em seu estudo, Fama e seus colegas verificaram o que era mais importante para o mercado: se era a notícia do split, em geral dada com alguma antecedência, ou o split em si. Não deu outra: o normal é que a alta mais relevante aconteça no dia do anúncio. Ou seja: o mercado incorpora imediatamente a informação do split ao preço. E o futuro se torna imprevisível novamente.
Essa é a conclusão de um dos artigos clássicos das finanças: “Prova de que preços antecipados corretamente flutuam de maneira aleatória”, publicado em 1965 pelo (também Nobel) Paul Samuelson. Consolidava-se ali a Hipótese dos Mercados Eficientes (EMH).
Samuelson se baseia no doutorado do matemático francês Louis Bachelier, feito em 1900. Ali, ele prova que o preço de um ativo no mercado financeiro flutua segundo o mesmo modelo matemático por trás do movimento browniano – que é o agito aleatório de uma molécula em um fluido (líquido ou gás) conforme ela colide com todas as outras moléculas ao seu redor.
Ambos são exemplos de processos estocásticos, em que o desfecho dos acontecimentos no passado não interfere no presente: se você jogar uma moeda oito vezes e ela der coroa em todas, a chance de dar cara no próximo lance continua sendo 50%. O Universo não tem um mecanismo mágico de compensação. Do mesmo jeito, a chance de uma ação subir ou descer no futuro não depende das subidas e descidas do passado.
Decorre disso que a única estratégia de investimentos eficaz é: monte uma carteira diversificada, com ações sólidas, e aceite que você, sozinho, não pode ser mais esperto que o mercado – na impossibilidade de vencê-lo, junte-se a ele. Quando a economia crescer, seu saldo em ações cresce junto. Qualquer coisa fora disso é sorte – e se for para tentar a sorte, melhor ir a uma lotérica.
O problema é que a EMH e sua aleatoriedade dependem da premissa de que cada ator age de maneira racional, utilizando tal racionalidade para obter os maiores ganhos possíveis. Seria perfeito, caso fôssemos robôs. Mas somos entidades biológicas, com instintos tortos, programados pela seleção natural. Às vezes, o mercado reage de forma selvagem, e cria distorções nos preços. Alguns ativos ficam, sim, mais baratos do que deveriam, criando oportunidades de compra; ou extraordinariamente mais caros, engatilhando bolhas irracionais.
Investidores sempre souberam disso – de outra forma, não existiria um mercado. “Eu acho que os traders sabem que há dinheiro para se ganhar no mercado, que existem coisas que parecem fora do lugar”, diz Igor. “Às vezes, você é mesmo o primeiro a encontrar a nota de R$ 100 no chão, e ela é legítima. Essas notas existem.”
A partir dos anos 1970, alguns economistas perceberam a necessidade de modificar a frieza newtoniana da EMH para incorporar o comportamento humano, e montar uma teoria realmente completa sobre a mecânica do mercado. O primeiro passo foi criar um grande catálogo dos tropeços e deslizes que interferem na forma como nós (investidores ou não) tomamos nossas decisões.
Preguiça de pensar
Pessoas, em média, têm preguiça de pensar, e decidem com base em intuição ou em regras padronizadas e simplificadas (as heurísticas, na linguagem acadêmica) em vez de fazer contas. Ou seja: há quem considere consumo de gasolina, IPVA, seguro, manutenção e tantas outras variáveis na hora de comprar um carro. Mas há quem compre um SUV porque, sei lá, tem um monte na rua e é bonitinho.
Diversos economistas com um pé na psicologia e psicólogos com um pé na economia – como Richard Thaler e a dupla Daniel Kahneman e Amos Tversky – mapearam os vieses cognitivos que interferem nas finanças em todos os níveis, de decisões domésticas ao gerenciamento de fundos bilionários. Vamos explicar algumas dessas fraquezas.
Por exemplo: se um livro custa R$ 40 em uma loja e R$ 50 na outra, você provavelmente opta por ir à primeira. Mas se você precisa escolher entre uma TV de R$ 2.000 e uma de R$ 1.990, é mais provável que você ignore a diferença – como se R$ 10 valessem menos quando o valor do produto é ordens de magnitude maior.
Algo similar acontece quando você bebe sua restituição do IR no bar como se a grana fosse presente. Na verdade, é dinheiro que você já tinha, deu para o governo e agora voltou – só parcialmente – para sua conta. Em 1999, Thaler denominou esse fenômeno mental accounting, “contabilidade mental”: embora cada unidade de dinheiro tenha valor idêntico (o dinheiro é fungível, no jargão), nós colocamos dinheiros do cotidiano em caixinhas imaginárias diferentes. Isso nos ajuda a pensar sobre nossas despesas, mas também leva a decisões irracionais.
Outro clássico do cérebro é a ancoragem. Por exemplo: na minha cabeça, meio queijo minas padrão é sinônimo de R$ 20. Porém, por causa da inflação, já faz algum tempo que ele custa R$ 30, R$ 35. Resultado: estou sem comprar queijo há meses. Cismei com um valor de referência, e não consigo reajustá-lo.
Os primeiros experimentos de Kahneman com ancoragem envolviam resolver uma multiplicação: 1 x 2 x 3 x 4 x 5 x 6 x 7 x 8. Depois, ao contrário: 8 x 7 x 6 x 5 x 4 x 3 x 2 x 1. Os voluntários do estudo recebiam uma pequena quantidade de tempo para dar um chute sobre o resultado; tempo insuficiente para completar a conta (que dá 40.320 – nos dois casos, claro). E então eram convidados a estimar o valor. Quem pegou a multiplicação em ordem crescente chutou, em média, 512. Em ordem decrescente, 2.550. Os chutes se apoiaram inconscientemente nos resultados das primeiras multiplicações – as que os voluntários tiveram tempo de completar.
Outra contribuição da dupla Kahneman e Amos foi estudar um par de vieses cognitivos chamados aversão ao risco e aversão à perda. A versão simples da explicação é a seguinte: em média, a tristeza de perder R$ 1 mil é maior do que a alegria de ganhar R$ 1 mil.
A consequência disso: quando alguma ação que você tem na carteira sobe, sei lá, 60%, você fica se coçando para vender logo e ter a satisfação de realizar o lucro. Como disse o Faria Lima Elevator no Twitter: “Sabe aquela história de ‘se você tivesse comprado a ação tal há alguns anos, teria 1.000% de lucro hoje’? Então: você teria vendido bem antes”. Economia comportamental na veia.
Por outro lado, se você perde 60%, tende a abraçar essas ações. E até a comprar mais na esperança de que elas voltem a subir para “diminuir o preço médio” (quem nunca?).
O medo de realizar o prejuízo, de materializar a perda, é um instinto profundo. E que causa distorções irracionais. Não houvesse esse impulso por comprar mais, o preço da ação cairia com ainda mais violência. Já papéis de companhias exemplares podem parar de subir simplesmente porque o impulso pela realização do lucro criou uma liquidação irracional de boas ações.
A lista de vieses vai longe. Continuando, existe a ilusão de superioridade (o famoso “eu sei que a maioria dos traders não consegue bater o mercado, mas eu consigo”) e o viés de confirmação – quando o investidor aceita mais facilmente uma informação que confirma as crenças que ele já tinha, mas é resistente a informações que contrariam suas crenças. Para não falar no efeito manada, que dispensa explicações: “se todo mundo está comprando esse troço, deve ser uma boa”.
Outra dupla de vieses – estes aqui, primos próximos um do outro – serão especialmente importantes mais para a frente neste texto:
Um é o viés de disponibilidade. A Covid-19 chegou a matar o equivalente a quatro Boeings 747 cheios de brasileiros por dia, mas as mortes não causavam uma comoção equivalente – porque acidentes de avião ficam mais em evidência tanto na mídia como em nosso imaginário. De maneira parecida, se você está sendo bombardeado com notícias de alta no Bitcoin e de bancos que passaram a operar como exchanges de cripto, fica parecendo que esse é um investimento tão seguro quanto títulos públicos, quando na verdade é mais arriscado do que opções de compra, vendas a descoberto, dólar futuro e outras modalidades distantes do dia a dia dos investidores não profissionais.
Outro é o viés de representatividade. De acordo com Igor, é o que acontece quando o mercado aposta que tal empresa pode se tornar o próximo Google. O problema: a quantidade de Googles, ou seja, de empresas que mudaram a história da humanidade, é ínfima. Mas disso ninguém gosta de lembrar. Isso faz com que o mercado, em média, reaja demais às notícias boas sobre “o próximo Google” – ou à “nova Magalu”; ou à Magalu em si, quando ela era vista como uma próxima Amazon. E o resultado é a valorização irracional de alguns ativos.
Moral da história: errar é humano. Nossas cabeças evoluíram para usar atalhos que, na pré-história, nos permitiam tomar decisões rapidamente – se todo mundo começa a correr, vá junto; provavelmente apareceu um predador e só você não viu. Esses atalhos, porém, criam armadilhas hoje, como comprar cripto ou novas Magalus por efeito manada. É o pensamento rápido (instintivo) vs. devagar (racional) descrito por Kahneman em seu maior best seller.
Há centenas de experimentos que comprovam a existência de cada um desses fenômenos no cotidiano e no mundo das finanças. Mas como transformá-los em números? Como incorporá-los a um modelo matemático que descreva a realidade do mercado financeiro melhor que as equações dos mercados eficientes – esse mundinho teórico ideal onde não há bolhas?
Darwin explica
A primeira e mais conhecida proposta fechada para remendar a ideia dos mercados eficientes foi a Hipótese dos Mercados Adaptativos, consagrada por Andrew Lo, um professor de economia do MIT, em 2004. Lo foi o primeiro a tentar uma síntese entre a EHM e as finanças comportamentais de Kahneman – admitindo que o mercado é eficiente e racional às vezes, mas usando os vieses cognitivos para explicar os momentos em que ele não é.
Lo pensa na bolsa de valores como um habitat, em que vários indivíduos de uma mesma espécie – a humana, no caso (rs) – disputam dinheiro. Os investidores que adotam a estratégia mais racional enchem os bolsos em detrimento dos que operam de maneira ineficaz. Da mesma forma que, na natureza, indivíduos que nascem mais aptos a sobreviverem no seu meio têm mais filhotes e espalham seus genes.
Acontece que “apto” é um termo relativo. Depende do contexto: um investidor que encheu os bolsos especulando em vários anos seguidos de bull market – uma época de alta nas ações – tende a jogar de modo a se beneficiar de altas. Ele faz isso porque é o que sempre fez, e dá certo (pense em alguém que começou a operar na bolsa em 2003 e chegou em 2008 sem ter visto um único ano de queda no Ibovespa).
Assim, o mercado tem longos momentos de estabilidade e eficiência, em que os investidores se comportam cada vez mais como agentes racionais, porque refinam suas estratégias para lucrar cada vez mais com base na situação vigente.
Até que vem um problema. “Quando acontece um choque econômico – como a Covid-19 –, o mercado se desorganiza”, explica Marco Aurélio dos Santos, pesquisador da FGV. “Ele fica menos eficiente até que os agentes entendam qual é o cenário e quais são as estratégias vencedoras. Aí ele volta a tender à eficiência.”
No momento em que uma bolha estoura, um trader que aposta em altas agora desaba junto com suas ações e derivativos. A estratégia que era eficaz se tornou ineficaz no dia seguinte. E dá lugar a uma nova estratégia, que já é dominada por outros jogadores. O clima vira e fica bom para os ursos – os que apostam nas baixas, lucrando com vendas a descoberto. Eles já são especialistas nesse jogo, afinal.
A hipótese dos mercados adaptativos foi só o começo. Os acadêmicos se esforçam cada vez mais para incluir o comportamento humano em modelos matemáticos que recriam o funcionamento do mercado de verdade. Um dos protagonistas nessa obra é o economista russo-americano Andrei Shleifer, de Harvard. Shleifer e sua turma criaram um modelo que leva em consideração o viés de representatividade.
Esse grupo verificou, por observação empírica, que analistas de bancos e corretoras costumam dobrar os números que chegam às suas mãos quando estão diante de um “próximo Google”. Se o lucro de uma empresa queridinha das notícias aumentou 10%, os analistas passam a prever altas de uns 20% no preço da ação, e influenciam o mercado a tornar isso realidade.
Eles também determinaram que esse tipo de reação exagerada dura em média três anos – depois, a tendência é que o ativo volte ao preço que deveria ter no contexto de um mercado eficiente.
Parece óbvio. E é óbvio: analistas ficam excessivamente otimistas, as ações se valorizam mais do que o justo e o valor de mercado infla. Mas quantificar esse fato, com base em montanhas de dados – e então gerar um gráfico “de laboratório” que pareça um gráfico real de bolha numa ação –, é um feito da ciência (e recente: o trabalho descrito acima foi publicado em 2019).
Talvez seja um sinal de que estamos cada vez mais próximos de antecipar o imponderável. E de transformar a economia em algo parecido com a utopia descrita na trilogia Fundação de Asimov: uma ciência social exata, capaz de prever os auges e colapsos das finanças e da economia – e, por tabela, de toda a humanidade.
Fonte: https://vocesa.abril.com.br/financas-pessoais/a-psicologia-das-financas-como-nossos-instintos-tornam-o-mercado-imprevisivel/